terça-feira, 24 de abril de 2007

Movimento Total – O Corpo e a Dança [1]

"Que a dança faça nascer, pela sutileza dos traços, pela divindade dos ímpetos, pela delicadeza das pontas paradas, essa criatura universal que não tem corpo nem rosto, mas que tem dons, e dias, e destinos".

Esse trecho do poeta francês Paul Valéry ilustra o que vai explicar o escritor português, José Gil, no nono capítulo do livro Movimento Total – O corpo e a dança. Gil, logo no primeiro parágrafo, afirma o pensamento de Valéry em L´Ame et la Danse (A alma e a dança), ligando o movimento dançado ao pensamento. O movimento dançado, para o poeta, segundo Gil, é o movimento de todos movimentos, tendo o poder de restituir sensações e imagens provenientes de todos os órgãos sensoriais.
Valéry[2] faz dizer ao personagem Fedro que a dança era comparada a um sonho, quando este contemplava a bailarina Athikté:
“(...)sonho com a doçura, indefinidamente multiplicada por si própria, desses encontros e dessas trocas de formas virgens. Sonho com esses contatos inexprimíveis que se produzem na alma, entre tempos, entre as brancuras e os movimentos desses membros em compasso, e os acentos dessa surda sinfonia sobre a qual todas as coisas parecem estar pintadas e serem transportadas”
E faz Sócrates responder, pois para este a dança é, antes de mais nada, uma questão de ordem e simetria e não de fantasia e embriaguez:
“Mas é precisamente o contrário de um sonho!(...) Quem sabe que augustas leis sonham aqui que assumiram rostos claros e que se combinam no desígnio de manifestarem aos mortais como o real, o irreal e o inteligível se podem fundir e compor segundo os poderes das Musas?”

O poeta também “convoca” Erixímaco, que tudo conhece da dança a acrescentar uma ligeira, mas decisiva inflexão: “É bem verdade, Sócrates, que o tesouro dessas imagens é inestimável. Não crês que o pensamento dos Imortais é precisamente aquilo que vemos, e que a infinidade dessas nobres semelhanças, as conversões, as inversões, as diversões inesgotáveis que se correspondem e se deduzem diante dos nossos olhos, nos transportam para conhecimentos divinos?
A alma e a dança, do poeta frânces, na forma de um discurso filosófico, fictivo, reveste ao longo de uma satírica conversa de mesa, reflexões sobre a dança. Valéry, diz Gil, serve-se neste texto de Fedro, Sócrates e Erixímaco para dizer qualquer coisa de inexprimível em um discurso coerente e lógico: que a dança se compõe de imagens de sonho, mas que esse sonho é real, e que encarna o pensamento dos deuses. Porque não o dos homens? Questiona o escritor português, em seguida justificando que a causa é a sublimidade dos movimentos da dança e, principalmente porque tais movimentos são demasiado sutis para os humanos. Como Valéry fez dizer a Fedro:
“(...) são inexprimíveis, e todavia compõem esse tecido(essa surda sinfonia) sobre o qual todas as coisas parecem estar pintadas e serem transportadas”. Como se as qualidades, as cores e as imagens(e até os odores) nascessem dos movimentos dançados.

Mas, diz Gil, Valéry também percorre uma outra idéia, em seu texto, formulada por Sócrates, e melhor ainda por Erixímaco. Esta idéia pretende que a dança encarna nos corpos o pensamento dos deuses porque este é paradoxal e incompreensível para os homens:
“(...) a dança quer mostrar aos mortais como o real, o irreal e o inteligível se podem fundir e combinar”.

Em Erixímaco faz dizer que a dança faz-nos aceder pela vista a conhecimentos reservados aos deuses, coisa que qualquer outra arte ou qualquer outro saber é incapaz. Entre esses conhecimentos, diz que evocamos os que emanam do corpo paradoxal.
Segundo Gil, o poeta parece dizer que os movimentos dançados fazem-nos captar um sentido que nenhum discurso simplesmente conceitual poderia pensar. É como se a dança fosse mais longe, articulando o sentido e o não-sentido, fazendo-nos compreender o “real e o irreal”, as “conversões, as inversões, as diversões”, ou seja, tudo que um discurso lógico não deixaria coexistir em seu seio.
A dança, para Valéry, mostra sua “combinação”, o modo como se “deduzem” e se “fundem” em movimentos dançados. A dança encadeia movimentos incompreensíveis, paradoxais, incoerentes para os simples mortais. Movimentos que se encontram também nos movimentos comuns.

Há uma fala de Erixímaco que ilustra a idéia desses movimentos paradoxais:“(...) não somos uma fantasia organizada? E o nosso sistema vivo não é uma incoerência que funciona, e uma desordem que age? – Os acontecimentos, os desejos, as idéias, não se trocam em nós da maneira mais necessária e mais incompreensível?...que cacofonia de causas e de efeitos!(...)”
Valéry em A alma e a dança multiplica os exemplos em seus personagens e oferece à dança um caráter “misterioso” ou “obscuro”, um elemento “mágico”, “encantado”, que combina o pensamento absurdo(para a lógica humana) com o pensamento mais poderoso e mais cintilante: o pensamento paradoxal. Paradoxal porque emana e encarna em um corpo paradoxal e porque transmite um sentido paradoxal, não-sentido ou absurdo.
Valéry acredita que a dança não se limita a dar a pensar certos movimentos, impensáveis de outro modo, mas constitui uma maneira de os pensar, transforma em movimento de pensamento o que o pensamento comum do movimento comum não pode pensar e é, por isso, segundo ele, que a dança nos fornece o acesso aos “conhecimentos divinos” e é por isso que os coreógrafos têm o sentimento de pensar quando dançam.
Mas, José Gil nos diz que Valéry não constrói esse plano de imanência do movimento dançado em seu texto, nunca se desfazendo das categorias platônicas do Inteligível e do Sensível, mesmo quando pensa em uma “Grande Dança” que produziria qualquer coisa como um “corpo glorioso” que rivalizaria com a alma, em liberdade e em potência de ubiqüidade(...)
Este corpo, nas suas fulgurações de vigor, propõe um pensamento extremo: do mesmo modo que pedimos à nossa alma muitas coisas para as quais ela não é feita, e que exigimos que ela nos esclareça, que profetize e que adivinhe o futuro, intimando-a até a descobrir o Deus – assim o corpo que ali está quer atingir uma possessão inteira de si próprio, e um ponto de glória sobrenatural(...) Valéry está muito próximo da idéia de um corpo que se torna pensamento ou de um pensamento que refaz os movimentos do corpo, um corpo de pensamento... “porque o corpo sendo coisa explode em acontecimentos”, ou segundo Deleuze, é “criador de sentido”. Isso ocorre de tal modo que não é mais possível falar de “movimento”, pois os atos já não se distinguem dos membros.

A dança diz, portanto, um sentido, mas “divino”, desajeitadamente traduzido pela linguagem e pelo conceito, ao passo que se encontra por inteiro exprimido nos movimentos da bailarina. O movimento da dança é o movimento do pensamento na medida em que as suas “atitudes impossíveis” traduzem o pensamento “absurdo” que só o corpo dançante resolve. Ou seja, a dança torna legível para o olhar e para um corpo de pensamento, os movimentos incompreensíveis do corpo paradoxal.

José Gil diz que nossa visão dos movimentos dançados “impossíveis” remete para os nossos próprios movimentos paradoxais e que o paradoxo estrutura nosso corpo inteiro, constitui-o enquanto corpo que atua, que anda, que comunica, corpo inserido e orientado no espaço e segregando a um tempo.
Notas:
[1] Título do capítulo 9 do livro Movimento Total. Gil, José. pp 229 – 250.
[2] Paul Valéry. L´Ame et la Danse. Ed. Pléiade, p.159.