terça-feira, 15 de maio de 2007

O corpo digital como "corpo perfeito"

Fredric Jameson (2000) afirma que quando a continuidade do tempo se quebra, a experiência do presente se torna poderosa e o passado das pessoas se torna uma coleção de imagens visuais, em fotos ou filmes. É a era do audiovisual, em que o referencial histórico é substituído pelo referencial imagético.

As novas tecnologias se dobram sobre o passado e sobre si mesmas, numa retração que relaciona presente, passado e futuro na cultura das imagens. Como dizia Deleuze (1992), as imagens tornam-se objetos de uma contínua reorganização, na qual uma nova imagem pode nascer de qualquer ponto da imagem precedente. Essa autonomia imagética, como conjunto de traços à procura de significação, é possível de ser facilmente localizada na sociedade ocidental contemporânea, uma sociedade marcada pela aceleração do tempo e pelo conseqüente esvaziamento de suas formas sociais.

Dentre as características que definem a sociedade contemporânea como “imagética”, está o fato de a mesma ser capitalista, e ter como princípio de concorrência a diferenciação dos produtos pelas imagens. Por conta disso, essa é uma sociedade na qual “estar na imagem é existir”, na qual se vive, então, numa forma de sociabilidade marcada pela performance, pela produção de impressões. Nesse contexto, o que pode ser a experiência do corpo?

Das características definidoras da sociedade das imagens, a idéia da mobilidade está no centro dessa questão que, hoje, resvala em aceleração do tempo. Richard Sennett (1997), em uma bela reconstituição da história do corpo, lembra-nos como “o homem moderno é, acima de tudo, um ser humano móvel”. Percebemos um corpo que não pode mais oferecer um “sentido de reconhecimento”, já que pressionado pela força do tempo acelerado impresso pelo capital, tornou-se um lugar de passagem, uma fachada de publicidade.

Diante de uma sociedade assim constituída, viveríamos agora em uma era de plasticidade absoluta, na qual um sujeito consumidor poderia assumir diferentes formas, representar diferentes papéis. O corpo, imagem de marca, apresentaria o modelo de ser o corpo possível para se viver dentro da sociedade das imagens. Uma sociedade na qual só é sujeito quem está dentro das imagens veiculadas para o consumo.

É na condição de implosão dessa sociedade que as imagens digitais se oferecem como uma “ilusão da forma”, a partir da qual se pode experimentar o corpo. Pois, se para constituir-se, o corpo precisa da forma do outro (entendido aqui como cultura), essa sociedade – que é sempre uma construção simbólica, histórica, contingente – define-se atualmente como um espaço que está arrebatado pelo fluxo incessante de produção e descarte, produto de uma era em que se fundem ciência, tecnologia e capital. Existir, na sociedade ocidental, é hoje estar na imagem de um modelo de corpo – que denominamos “corpo perfeito”.

Por “corpo perfeito” consideramos o conjunto de práticas e cuidados – quase rituais – que têm como preocupação principal a maior aproximação possível de um padrão de beleza estabelecido socialmente nas comunidades ocidentais contemporâneas, que coloca a pele clara, os cabelos lisos, as formas retilíneas e a magreza como atuais ideais de perfeição.

Os rituais para o alcance desse modelo de corpo não se resumem apenas à prática de atividade física, mas envolvem o consumo de cosméticos, os alimentos da linha diet, os acessórios da moda e outros produtos. Trata-se de toda uma filosofia de vida, envolvendo a adoção de certos princípios morais, de determinadas concepções estéticas, de atitudes e comportamentos específicos.

Em resumo, poder-se-ia dizer que é uma ideologia, um conjunto de idéias, de imagens, de símbolos, de significantes e significados que orientam práticas e discursos do corpo. Nesse aspecto, a semelhança do “corpo perfeito” da contemporaneidade seria associada ao discurso transhumanista, que almeja o aperfeiçoamento da condição humana por meio da tecnologia, em última instância, acarretando o abandono da própria noção do humano. São fantasias de superação dos limites corporais, da ubiqüidade das subjetividades tecnológicas e da digitalização do self, que apontam para um desejo de fuga do tempo e do espaço presentes, mas apontam também para o desejo de manipulação da realidade, do controle do corpo, do domínio sobre si.

O imaginário que estabelece o atual modelo de “corpo perfeito” é contemporâneo, mas o desejo de redenção tecnológica na criação de um “admirável corpo novo” pode ser construído sobre os fragmentos de antigos mitos e de seres artificiais, que funcionam como metáforas para o estabelecimento desse determinado modelo de corpo, correspondente ao que denominaremos de corpo digital. O corpo digital seria o modelo ideal de corpo da sociedade contemporânea. Isso porque seria o corpo possível para se viver dentro da sociedade das imagens, uma sociedade de produção e descarte muito rápidos.

Na impossibilidade de se possuir um “corpo perfeito” de carne e osso, a tecnologia de imagens forneceria mecanismos para a construção de um corpo digital que contemplasse todas as características estabelecidas pela sociedade ocidental contemporânea referente à noção de “corpo perfeito”. O corpo digital seria o “corpo perfeito” em sua máxima performance, pois atingiria o estado de pureza original, já que a imagem não contrai doenças, não envelhece ou morre.

Referências Citadas:
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000.
SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997.

terça-feira, 24 de abril de 2007

Movimento Total – O Corpo e a Dança [1]

"Que a dança faça nascer, pela sutileza dos traços, pela divindade dos ímpetos, pela delicadeza das pontas paradas, essa criatura universal que não tem corpo nem rosto, mas que tem dons, e dias, e destinos".

Esse trecho do poeta francês Paul Valéry ilustra o que vai explicar o escritor português, José Gil, no nono capítulo do livro Movimento Total – O corpo e a dança. Gil, logo no primeiro parágrafo, afirma o pensamento de Valéry em L´Ame et la Danse (A alma e a dança), ligando o movimento dançado ao pensamento. O movimento dançado, para o poeta, segundo Gil, é o movimento de todos movimentos, tendo o poder de restituir sensações e imagens provenientes de todos os órgãos sensoriais.
Valéry[2] faz dizer ao personagem Fedro que a dança era comparada a um sonho, quando este contemplava a bailarina Athikté:
“(...)sonho com a doçura, indefinidamente multiplicada por si própria, desses encontros e dessas trocas de formas virgens. Sonho com esses contatos inexprimíveis que se produzem na alma, entre tempos, entre as brancuras e os movimentos desses membros em compasso, e os acentos dessa surda sinfonia sobre a qual todas as coisas parecem estar pintadas e serem transportadas”
E faz Sócrates responder, pois para este a dança é, antes de mais nada, uma questão de ordem e simetria e não de fantasia e embriaguez:
“Mas é precisamente o contrário de um sonho!(...) Quem sabe que augustas leis sonham aqui que assumiram rostos claros e que se combinam no desígnio de manifestarem aos mortais como o real, o irreal e o inteligível se podem fundir e compor segundo os poderes das Musas?”

O poeta também “convoca” Erixímaco, que tudo conhece da dança a acrescentar uma ligeira, mas decisiva inflexão: “É bem verdade, Sócrates, que o tesouro dessas imagens é inestimável. Não crês que o pensamento dos Imortais é precisamente aquilo que vemos, e que a infinidade dessas nobres semelhanças, as conversões, as inversões, as diversões inesgotáveis que se correspondem e se deduzem diante dos nossos olhos, nos transportam para conhecimentos divinos?
A alma e a dança, do poeta frânces, na forma de um discurso filosófico, fictivo, reveste ao longo de uma satírica conversa de mesa, reflexões sobre a dança. Valéry, diz Gil, serve-se neste texto de Fedro, Sócrates e Erixímaco para dizer qualquer coisa de inexprimível em um discurso coerente e lógico: que a dança se compõe de imagens de sonho, mas que esse sonho é real, e que encarna o pensamento dos deuses. Porque não o dos homens? Questiona o escritor português, em seguida justificando que a causa é a sublimidade dos movimentos da dança e, principalmente porque tais movimentos são demasiado sutis para os humanos. Como Valéry fez dizer a Fedro:
“(...) são inexprimíveis, e todavia compõem esse tecido(essa surda sinfonia) sobre o qual todas as coisas parecem estar pintadas e serem transportadas”. Como se as qualidades, as cores e as imagens(e até os odores) nascessem dos movimentos dançados.

Mas, diz Gil, Valéry também percorre uma outra idéia, em seu texto, formulada por Sócrates, e melhor ainda por Erixímaco. Esta idéia pretende que a dança encarna nos corpos o pensamento dos deuses porque este é paradoxal e incompreensível para os homens:
“(...) a dança quer mostrar aos mortais como o real, o irreal e o inteligível se podem fundir e combinar”.

Em Erixímaco faz dizer que a dança faz-nos aceder pela vista a conhecimentos reservados aos deuses, coisa que qualquer outra arte ou qualquer outro saber é incapaz. Entre esses conhecimentos, diz que evocamos os que emanam do corpo paradoxal.
Segundo Gil, o poeta parece dizer que os movimentos dançados fazem-nos captar um sentido que nenhum discurso simplesmente conceitual poderia pensar. É como se a dança fosse mais longe, articulando o sentido e o não-sentido, fazendo-nos compreender o “real e o irreal”, as “conversões, as inversões, as diversões”, ou seja, tudo que um discurso lógico não deixaria coexistir em seu seio.
A dança, para Valéry, mostra sua “combinação”, o modo como se “deduzem” e se “fundem” em movimentos dançados. A dança encadeia movimentos incompreensíveis, paradoxais, incoerentes para os simples mortais. Movimentos que se encontram também nos movimentos comuns.

Há uma fala de Erixímaco que ilustra a idéia desses movimentos paradoxais:“(...) não somos uma fantasia organizada? E o nosso sistema vivo não é uma incoerência que funciona, e uma desordem que age? – Os acontecimentos, os desejos, as idéias, não se trocam em nós da maneira mais necessária e mais incompreensível?...que cacofonia de causas e de efeitos!(...)”
Valéry em A alma e a dança multiplica os exemplos em seus personagens e oferece à dança um caráter “misterioso” ou “obscuro”, um elemento “mágico”, “encantado”, que combina o pensamento absurdo(para a lógica humana) com o pensamento mais poderoso e mais cintilante: o pensamento paradoxal. Paradoxal porque emana e encarna em um corpo paradoxal e porque transmite um sentido paradoxal, não-sentido ou absurdo.
Valéry acredita que a dança não se limita a dar a pensar certos movimentos, impensáveis de outro modo, mas constitui uma maneira de os pensar, transforma em movimento de pensamento o que o pensamento comum do movimento comum não pode pensar e é, por isso, segundo ele, que a dança nos fornece o acesso aos “conhecimentos divinos” e é por isso que os coreógrafos têm o sentimento de pensar quando dançam.
Mas, José Gil nos diz que Valéry não constrói esse plano de imanência do movimento dançado em seu texto, nunca se desfazendo das categorias platônicas do Inteligível e do Sensível, mesmo quando pensa em uma “Grande Dança” que produziria qualquer coisa como um “corpo glorioso” que rivalizaria com a alma, em liberdade e em potência de ubiqüidade(...)
Este corpo, nas suas fulgurações de vigor, propõe um pensamento extremo: do mesmo modo que pedimos à nossa alma muitas coisas para as quais ela não é feita, e que exigimos que ela nos esclareça, que profetize e que adivinhe o futuro, intimando-a até a descobrir o Deus – assim o corpo que ali está quer atingir uma possessão inteira de si próprio, e um ponto de glória sobrenatural(...) Valéry está muito próximo da idéia de um corpo que se torna pensamento ou de um pensamento que refaz os movimentos do corpo, um corpo de pensamento... “porque o corpo sendo coisa explode em acontecimentos”, ou segundo Deleuze, é “criador de sentido”. Isso ocorre de tal modo que não é mais possível falar de “movimento”, pois os atos já não se distinguem dos membros.

A dança diz, portanto, um sentido, mas “divino”, desajeitadamente traduzido pela linguagem e pelo conceito, ao passo que se encontra por inteiro exprimido nos movimentos da bailarina. O movimento da dança é o movimento do pensamento na medida em que as suas “atitudes impossíveis” traduzem o pensamento “absurdo” que só o corpo dançante resolve. Ou seja, a dança torna legível para o olhar e para um corpo de pensamento, os movimentos incompreensíveis do corpo paradoxal.

José Gil diz que nossa visão dos movimentos dançados “impossíveis” remete para os nossos próprios movimentos paradoxais e que o paradoxo estrutura nosso corpo inteiro, constitui-o enquanto corpo que atua, que anda, que comunica, corpo inserido e orientado no espaço e segregando a um tempo.
Notas:
[1] Título do capítulo 9 do livro Movimento Total. Gil, José. pp 229 – 250.
[2] Paul Valéry. L´Ame et la Danse. Ed. Pléiade, p.159.